RESENHA LITERÁRIA
Alexandra Patrocínio Nogueira[1]
O escritor baiano Markus Vinicius Borges dos Santos lançou, em março de 2016, o seu terceiro livro intitulado Os Girassóis da manhã seguinte e o canto do Pássaro livre – gênero poesia. O qual recebeu o Prêmio Vicente de Carvalho no Concurso Internacional de Literatura 2015 da União Brasileira de Escritores.
O encontro com esta obra se deu de forma inusitada [tenho a sensação que foi ela que me encontrou]. Ao navegar no facebook de uma amiga da família – poetisa Solange Durães, lá estava ele, os girassóis… – com olhos brilhantes e insones a me convidar a lê-lo.
Não resisti e o devorei na mesma noite em que o segurei em minhas mãos. O sabor? Sabor de compreensão, naquela noite compreendi o real significado do que Todorov (2012) já nos dizia em “A literatura em Perigo”:
A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos faz compreender melhor o mundo e nos ajuda a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. (TODOROV, 2012, p. 76).
Os Girassóis da manhã seguinte e o canto do Pássaro livre sintetiza bem a definição de Todorov sobre o poder e a força da literatura – digo isso sem medo de correr o risco do exagero, os poemas descritos abrem um leque de possibilidades que nos fazem compreender melhor o mundo e a nós mesmos.
Ao pesquisar sobre a vida do autor, descobri que sua formação acadêmica era medicina por isso, muitas vezes, ele é descrito pela mídia e por alguns literatos como um médico e como um escritor. Confesso que tenho dificuldades para aceitar essa ordem de formação, para mim Markus Viny é um escritor que se tornou médico. Contudo, não posso deixar de considerar que as duas escolhas do autor, apesar de seguirem cursos distintos deságuam no mesmo rio – a medicina e o cuidado com o corpo, a literatura e o cuidado com a alma.
O poeta possui uma sensibilidade exacerbada que o difere de muitos escritores contemporâneos, haja vista que em sua poética há uma extraordinária capacidade de apreensão de detalhes ínfimos da vida, da nossa transitoriedade, do existencialismo e de nossos delírios. Transita facilmente entre a carne e o espírito de forma leve, sem culpas, sem dogmas e preconceitos.
As ilustrações da obra, feitas a próprio punho, intercaladas entre uma poesia e outra nos remetem as delícias da infância e dos trabalhos escolares em nanquim. São puros e enigmáticos, revelam a intimidade do autor que transita entre a infância e a vida adulta, entre a loucura e a sanidade – se é que podemos falar de sanidade no pleno sentido da palavra.
Percebe-se na obra de Markus Viny uma forte influência Freudiana e Lacaniana. O inconsciente e a subjetividade do sujeito é um fio condutor na tecitura que atravessa o tear. No poema Lacanção do pássaro ferido, temos: Ele lacanizava/os poros abertos/do sol, deixando/ a canção das garças/somarem asas/de girassóis/aboios feitos/de penas amarelas… (p. 64). Assim, o sujeito da falta, da incompletude, do delírio, do desejo, vai sendo bordado nas construções poéticas do autor.
Desse modo, os constructos da psicanálise em sua poesia funcionam como “elixir” para o mal-estar na civilização: o esvaziamento das relações humanas, que impulsiona o consumismo voraz e a busca de bens de consumo em detrimento de valores humanos vai se tornando a regra.
A despeito da formação racionalista nas ciências médicas, que naturalmente influencia seus escritos, o autor permanece sensível àquilo que não é tão visível aos olhos, repudiando falsos padrões de avaliação sobre o outro, revelando aos seus leitores um olhar cuidadoso sobre o homem, a vida, a morte e tudo que está ao seu entorno.
Daí a importância do texto de Freud em O mal-estar na civilização (1930) quando diz que:
é impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação – isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. No entanto, ao formular qualquer juízo geral desse tipo, corremos o risco de esquecer quão variados são o mundo humano e sua vida mental. Existem certos homens que não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que, no final das contas, apenas uma minoria aprecia esses grandes homens, ao passo que a maioria pouco se importa com eles. Contudo, devido não só às discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples assim (FREUD, 1930, p.1).
Os escritos do livro de Markus Viny abordam temáticas que vão para além de uma simples preocupação social, à medida que na tessitura dos poemas há ecos contra a alienação do ser-genérico, do objeto, do próprio homem, do trabalho e, acima de tudo de si mesmo.
Os girassóis da manhã seguinte e o canto do pássaro livre pode ser descrito como um livro de memórias autobiográficas. O poeta se “despe” de suas máscaras e relata as experiências infantis, a exemplo do poema intitulado Da infância, a relação com a família, nos poemas A casa dos meus pais e Os três marujos, da religiosidade nos poemas Mãe de santo, Dos Mantras, do amor Eros em Conclusão, do desejo de liberdade em O anunciar de um novo canto, O canto do pássaro livre, do interdito em Biografia, da lida do campo em Boia-fria. A natureza também é reverenciada nos poemas Pompeia e Riacho. A singularidade da vida do autor bordada na sua poética expressa uma universalidade no tocante às questões humanas. Todavia, cabe salientar que um trabalho autobiográfico não se resume num simples despir-se de máscaras, pelo contrário, usam-se várias. Pois, ao escrever sobre si, inventa-se também.
O poeta escreve e desenha seus delírios e sonhos mais íntimos, sem medo de ser analisado, lida com a loucura com uma boa dose de humor e sem preconceitos. O pássaro ferido não tem medo de expor à “bruma leve das paixões que vem de dentro” – sua dor e sua fragilidade, suas alegrias e esperanças, não tem medo de ser apenas gente. Poder-se-ia dizer que esta obra é uma representação simbólica do processo de regressão do autor, seu momento de catarse.
É importante destacar a escolha assertiva do título do livro – provocador, enigmático e poético, o qual suscita alguns questionamentos como: o que significam os girassóis? Porque da manhã seguinte? E qual a sua relação com a liberdade do pássaro? O processo de revisitar-se, de regressão e de catarse provavelmente responda tais questões. O título nos provoca à medida que toca em anseios tão subjetivos e universais quanto o desejo de liberdade e de viver que cerca o homem.
Ademais, Markus Viny se destaca com maestria pelo aguçado jogo de palavras e de ideias – como no caso do poema Lacanção… (remetendo-nos a expressão La canção – separado como a Lacanção – junto se referindo a Lacan) movendo o leitor, como um rio, sempre na direção do mar, na tentativa de fazê-lo refletir sobre a vida e sua transitoriedade, forçando-o a deixar o casulo do automatismo que o aliena.
Os textos do autor não
negam os sabores e os dissabores da vida, eles são parte da vida e, certamente,
em nossa travessia iremos prová-los. Contudo, há uma certeza para o pássaro
ferido: Os girassóis sempre estarão brilhando na manhã seguinte, anunciando um
novo canto – o canto do pássaro livre. Romper o invólucro é preciso, lembrando
que o voo cigano sempre é possível, mesmo que precisemos de asas ambulantes.
[1] Autora do Livro “Lições de Literatura no Programa Gestar II” – O ensino de literatura na escola, publicado pela NEA – Novas Edições Acadêmicas. Professora de Língua e Literatura da Rede Pública Estadual de Ensino. Supervisora do PIBID/Interdisciplinar da UEFS- Ba. Vice-diretora do Colégio Estadual Durvalina Carneiro em Feira de Santana – Bahia. Mestra em Estudos de Linguagem/UNEB- Ba. Especialista em Educação Ciência e Contemporaneidade – UEFS. Graduada em Letras com Inglês – UEFS.