Alexandra Patrocínio / UNEB
Alexandra Patrocínio[1]
Resumo: A literatura baiana contemporânea vem apresentando uma intensa atividade literária com vasta produção de escrita feminina, inclusive de novas autoras que, infelizmente, não ganham visibilidade nacional, pois ainda sofrem preconceitos com a dominação masculina do mercado editorial. Nesse contexto, observa-se que a poesia feminina insere-se no cenário literário baiano como um instrumento de luta, de protesto e de exposição dos sentimentos. Assim sendo, pretende-se com esta comunicação, analisar um pequeno corpus da poesia de Rita Queiroz, a qual se destaca por uma escrita ora lírica, ora erótica. Tratando sempre de temas tão caros ao poeta, como a questão do corpo e sua representação, bem como reflexões sobre a vida e a morte, a natureza, e a condição feminina.
Palavras-chaves: poesia; escrita feminina; literatura baiana; Rita Queiroz
INTRODUÇÃO
A literatura baiana tão conhecida no cenário nacional e internacional através de precussores como Gregório de Matos, Castro Alves, Jorge Amado, entre outros, os quais se destacaram por uma vasta produção literária no país, sempre foi marcada por um cânone literário de predominância masculina. Nesse contexto, cabe destacar o aumento de mulheres escritoras no cenário literário baiano, evidenciando, portanto, que as mulheres têm percorrido caminhos bastante significativos no campo literário, e usam esses espaços como forma de extirpar práticas de apagamento de sua escritura, bem como promover representações e discursos literários antipatriarcais e antidescriminatórios. Propondo assim, rupturas com o que já está estabelecido e proposto pela tradição da arte literária no Brasil.
Desse modo, é importante ressaltar que historicamente as mulheres escritoras foram mutiladas em suas atividades literárias, o que tornou masculina a história da literatura. Portanto, ao falar do crescimento da escrita feminina na Bahia, pretende-se denotar uma produção literária marcadamente influenciada e desenhada por mulheres baianas com o intuito de fortalecer a construção de uma identidade feminina, deslocando a mulher da condição de objeto, de “musa” da poesia e tornando-a sujeito da escrita, isto é, escritora/poeta.
Embora ainda pouco presentes nos circuitos editoriais e literários instituídos, as mulheres escrevem, publicam e tensionam as interdições de suas vozes, abalando os discursos depreciativos sobre si, criticam e interrogam a cultura tradicional, como meio de substituir o discurso falocêntrico e apropriar-se de uma identidade que lhes tem sido negada. Nesse sentido, as escritoras baianas vêm se destacando no cenário literário do pais, a exemplo dos coletivos de mulheres “Mulherio das Letras – Bahia” e Confraria Poética Feminina”, uma vez que, suas vozes se convertem num espaço de liberação, de reconhecimento de si mesmas e de redefinição.
Neste processo, farei referência à poesia da poeta baiana Rita Queiroz, em “Confraria Poética Feminina Vol. II”, publicada pela Penalux, em 2018, a qual incorpora em sua escrita um discurso transgressor, desenhando um “eu feminino”, corajoso, que resiste ao medo e se lança ao enfrentamento do pensamento dominante masculino construindo um “eu-mulher” livre de estereótipos atribuídos à mulher, os quais tentam anular suas vontades, paixões e ações.
Antes de iniciar o estudo do corpus da poesia de Rita Queiroz, é preciso esclarecer o que se quer dizer com a expressão “Poesia com Dendê”. A alusão proposital da poesia com o dendê se concretiza na importância desse óleo típico da culinária baiana, a qual atribui sabor, cor e cheiro aos alimentos, conferindo uma identidade própria a sua cozinha. Semelhantemente, a poesia baiana contemporânea, apresenta-se temperada com sabores, cores e cheiros típicos de uma escrita subversiva, que não se prende aos moldes pré-estabelecidos por um cânone de hegemonia masculina.
Confraria Poética Feminina, Vol. II, reúne poemas num coletivo de mulheres baianas, organizada por Rita Queiroz, as quais fazem parte 22 poetas, incluindo a organizadora. Nessa coletânea há quatro poemas da autora, a saber: Abissal; Rimas Imperfeitas; Sem Destino e Traçado do Tempo, os quais se configuram como intimistas e autobiográficos construídos sobre coisas quotidianas, memórias ou experiências – reais ou fictícias, evidenciando assim uma cumplicidade imediata com o leitor.
Do ponto de vista da sintaxe e da gramática, a autora não se desvia das construções “normais”, mantendo-se no normativo e na tradição da poesia lírica. Uma das características mais notáveis na poesia de Rita Queiroz é a articulação entre poesia e cotidiano, nesse caso, um cotidiano de “dentro”, com construção de epifanias do quotidiano da subjetividade dos sujeitos, um quotidiano feminino, denotando sempre em sua escrita uma primazia do olhar dirigido à alma e ao corpo, bem como as suas complexidades, questionando esse não-lugar ou entre lugares entre a (in) materialidade do ser/alma que se encontra perdido na contemporaneidade.
Em “Abissal”, o eu-lírico anda em busca de uma identidade própria, configurando um desconserto existencial que questiona a noção de certezas, verdades absolutas e concretudes. Assim, o sujeito da falta, da incompletude, do delírio, do desejo, vai sendo bordado nas construções poéticas da autora.
Abissal
Ando perdida de mim mesma
Presa naquela estação
Sem destino, ao léu
Todos seguem… eu não!
Minhas bagagens estão incrustadas na alma
Descarrilo-me…
Sou apenas tumulto, danação!
As borboletas pousam
E o acaso dá o tom do compasso
Na aparente trivialidade de uma afirmação “ando perdida de mim mesma” o eu-lírico que supostamente se encontra perdido, contrariamente nunca esteve tão “encontrado”, pois a poeta ao expressar sua angustia e seus questionamentos existenciais demonstra lucidez – ainda que suas bagagens estejam pesadas e presas naquela estação que só ela mesma conhece, mesmo assim, há um deslocamento, um descarrilhar-se – um permitir-se ser tumulto e danação.
Esse eu-mulher que se permite ser levada, conduzida pelo acaso ou não, que permite que as borboletas a façam de ninho é também, a mesma mulher que constrói “Rimas Imperfeitas”. Nesse poema, a autora vem confirmando seu lirismo romântico, a qual fala diretamente ao leitor, revelando os seus sentimentos mais íntimos, estado de espírito e suas percepções a respeito de si mesma, ou seja, ela realiza um exercício de catarse.
Rimas Imperfeitas
O vazio que nos separa
No palco de rimas imperfeitas
Frag ta
men das
Em retalhos de nossas almas.
Afogo-me no oceano de incertezas,
Esculpindo nossa fotografa em preto e branco,
A proferir silêncios de desassossego
Em cálices prenhes de vinho
Der
ra
ma
do
Sobre desejos e saudades.
Nesse contexto, depreende-se a razão pela qual o leitor facilmente se identifica com a poesia de Rita Queiroz, pois ele se vê representado no poema que lê; esse leitor que também sofre de amores que vão e vêm, restando apenas retalhos de almas, oceano de incertezas, palavras fragmentadas, fotografia em preto e branco, desassossego, vinho derramado, desejos e saudades, enfim, o vazio que sempre fica nos processos de perdas.
Assim, a escrita de Rita Queiroz tem sabor, tem cheiro de gente, nos faz compreender melhor o mundo e nos ajuda a entender na prática, contemporaneizando, o significado do que Todorov (2012) já nos dizia em “A literatura em Perigo”:
A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos faz compreender melhor o mundo e nos ajuda a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. (TODOROV, 2012, p. 76).
Em “Sem Destino”, o eu-lírico representa o sujeito da modernidade – aquele que anda “sem destino”, sem certezas, em que os rasgos da memória estão expostos como feridas na pele, uma vez que, há um o esvaziamento das relações humanas, o homem moderno anda as escuras ou sob a luz de candeeiros inventados, perdido, sem identidade própria, sem digitais; algumas vezes peregrinando nas curvas das estradas da vida, outras vezes imóvel no compasso da agonia, sendo levado pelas incongruências almáticas.
Sem Destino
Sigo com as
meias certezas do nada,
Escrevendo
sombras na janela.
Meu
outro eu é corpo vazio,
Pintado
no arco-íris da memória.
A
música ao fundo se derrama sobre o horizonte,
Inscrevendo
rasuras em cartas de alforria.
Os
dedos percorrem os labirintos do destino,
Tatuando
histórias sem digitais.
Os
sinos profetizam as imortalidades perdidas,
Sob
a luz de candeeiros inventados
Nas
peregrinas curvas da estrada.
Na
confluência das estrelas em espiral,
Bailo
imóvel no compasso da agonia.
E
no ocaso, leio as linhas embaralhadas da vida.
Ao analisar as construções poéticas da autora, tem-se aí, também, a construção de um “eu-mulher”, aquela que se despe do papel de boa moça, recatada, do lar, que têm papéis definidos e uma vida cronometrada e desenhada pelo estereótipo de como se deve ser uma mulher. Um papel formatado, que não admite uma mulher viver sem destino, ao léu, ou ao seu bel-prazer, situação essa, não permitida as “mulheres de bem”, só ao universo masculino. Há aqui, uma subversão, o desejo de alforriar-se, de se ver livre, mesmo que não haja certezas, só vazios. Mesmo assim, no pôr-do-sol, no ocaso da vida, haverá linhas traçadas, ainda que embaralhadas, para quem quiser ler.
O poema “Traçado do Tempo”, fecha a série de poemas temáticos da autora nessa coletânea, a saber:
Traçado do tempo
O trevo de
quatro folhas
traz
o traçado do meu destino,
Lido
pela cartomante,
Nos
raios de sol do infnito,
Oásis
de minha inquietude.
Mergulho
no encanto misterioso
Das
armadilhas do pensamento.
E
os perfumes da memória se destilam
Na
efêmera dança do silêncio.
Rasuro
os papéis,
Fujo
das fotografias.
Os Deuses do
oráculo
Desfazem
os mitos.
Sigo
os rastros,
Na
vastidão sem sentido
Da
lua cheia de domingo.
Aparece aqui a mulher mística com seu trevo de quatro folhas e a crença na cartomante e nos deuses do oráculo – que ao passo que confirmam sua identidade espiritual, também desfazem os mitos. Nesse poema, reaparece a mulher que aparentemente anda perdida, buscando seguir as linhas do seu próprio destino, que insiste na escrita, ainda que por vezes rasuradas, os traços da memória estão presentes como cheiro de um perfume que nem sempre se quer lembrar, mas que estão incrustados na alma, nas armadilhas do pensamento, no silêncio, na lua cheia de domingo.
Os poemas de Rita Queiroz denotam uma liberação através da palavra, uma escrita destemida, apresenta um eu-lírico e um eu-mulher que ora se confundem, parece não se deixar amordaçar pelos medos que sempre afligem as escritoras, como afirma Clarice Lispector: “Tenho medo de escrever, é tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto, e o mundo não está à tona, está oculto nas suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio[…]” (LISPECTOR, 1991, p. 19).
Retomando a discussão inicial, conclui-se que, assim como o dendê faz toda diferença na comida baiana, em especial, na fritura do bolinho de acarajé – prato típico da culinária de rua, conferindo-lhe sabor especial, a poesia de Rita Queiroz se diferencia pela subversão, “seu fazer poético” revela uma mulher que não teme uma possível “confusão”, por parte dos leitores, do eu-lírico com o eu-autora, em outras palavras, o eu-lírico da poeta se encontra livre e despido de qualquer paradigma, sua poesia fervilha como óleo no tacho da baiana que espera os deliciosos bolinhos de feijão, de igual modo, a poesia da autora aguarda leitores ávidos e sedentos por uma boa comida literária.
Referências
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2012.
QUEIROZ,
Rita. Confraria Poética Feminina. Guaratinguetá, São Paulo: Penalux, 2018.
[1] Autora do Livro “Girassóis em noites escuras”, publicado pela Penalux, 2018. Autora do Livro “Lições de Literatura no Programa Gestar II” – O ensino de literatura na escola, publicado pela NEA – Novas Edições Acadêmicas. Professora de Língua e Literatura da Rede Pública Estadual de Ensino. Mestra em Estudos de Linguagem/UNEB- Ba. Especialista em Educação Ciência e Contemporaneidade – UEFS. Graduada em Letras com Inglês – UEFS. Faz parte do Mulherio da Letras – Bahia e Confraria Poética Feminina.